INTRODUÇÃO
A entrada em vigor de um novo programa de ensino no ano lectivo 2002/2003, marcou um momento de viragem para o ensino da língua materna em Portugal, enquadrado no movimento mais generalizado de revisão do ensino secundário homologada em 2001, implicando alterações relevantes no quadro de referências do exercício profissional docente, em particular dos professores de Português. Desde o início da sua implementação em todas as escolas secundárias do país desenvolvemos a ideia de avaliar as percepções dos professores relativamente ao programa e à sua inserção nos paradigmas educacionais constantes do currículo do secundário, bem como estudar o seu impacto e eventuais transformações nas práticas pedagógicas.
Este contexto de mudança legitimou a vontade de procurar respostas para questões como a verificação do grau de conhecimento das modificações arquitectadas pela revisão curricular do ensino secundário e o reconhecimento das alterações consubstanciadas pelo novo texto programático. Simultaneamente, tornou significativa a busca de compreensão dos modos e processos de apropriação, por parte dos professores, do currículo oficial da área do Português, tendo em conta a consequente mudança de paradigma educacional, exigida, em geral, pelo currículo e pelo programa de ensino em particular.
O estudo levado a cabo, de natureza descritiva-interpretativa, estabelece relações entre o sistema educativo, o currículo e o processo de ensino-aprendizagem e inscreve-se numa linha de orientação que pretende averiguar o impacto das transformações curriculares na prática profissional dos professores de Português no quadro da revisão curricular do ensino secundário. Elegeram-se as escolas secundárias do concelho de Sintra, por ser o local onde, há quase três décadas, temos leccionado e desenvolvido trabalho no campo da formação de professores.
Dez anos volvidos sobre a chegada às escolas do programa de ensino, torna-se legítimo averiguar o estado da adequação aos princípios consignados, a consonância entre o currículo prescrito pela Administração e o currículo em acção, a adesão ou o distanciamento produzido face a contingências de carácter pessoal e/ou local e assegurar o balanço e respectiva transmissão de conclusões que potenciem uma melhoria futura no ensino-aprendizagem da língua materna.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1. Dimensões do currículo
As práticas escolares podem ser determinadas pelas tradições, técnicas e perspectivas dominantes em torno do currículo num sistema educativo influenciado por um momento histórico preciso. O currículo assume-se, assim, como a expressão de um conjunto de interesses e forças, de valores e pressupostos que gravitam sobre o sistema educativo, configurando uma opção historicamente situada (Gimeno Sacristán,2000).
No contexto do sistema de ensino português, marcado teoricamente por uma reforma curricular centrada no ensino-aprendizagem por competências e na gestão flexível do currículo, é fácil verificar que este é entendido como algo que adquire forma e significado à medida que sofre processos de transformação dentro das actividades práticas que o têm mais directamente por objecto.
Por seu lado, a noção de reconceptualização inerente ao status actual assenta no princípio de que o importante não é desenvolver técnicas de reprodução do currículo mas conceitos que permitam compreender o impacto do currículo (Silva, 2000) nas escolas e na sociedade. Assim, o currículo surge como veículo de competências, um conjunto de aprendizagens que são pessoal e socialmente necessárias aos cidadãos no sentido da construção de sentidos e significados.
Consideram-se como factores determinantes em interacção na dinâmica da construção e evolução dos currículos, a sociedade, os saberes científicos e o conhecimento e representação do aluno, “currículo escolar é –em qualquer circunstância– o conjunto de aprendizagens que, por se considerarem socialmente necessárias num dado tempo e contexto, cabe à escola garantir e organizar” (Roldão, 1999: 24).
Pacheco (2008) procede à abordagem do currículo, observando-o em três grandes dimensões: o currículo prescrito (competências da Administração Central), o currículo em projecto (competências curriculares da escola) e o currículo em acção (competências do professor). Autores como Perrenoud (1995) ou Gimeno Sacristán (2000) referem-se a estas dimensões do currículo com outras designações, tais como currículo formal e currículo real. Gimeno Sacristán apresenta-nos, ainda, o currículo apresentado, através de mediadores curriculares, como os manuais escolares, por exemplo, o currículo realizado, expressão dos resultados da interacção didáctica e o currículo avaliado, que inclui a avaliação de todos os intervenientes.
À educação escolar atribui-se, por norma, o papel de veículo de preservação da herança cultural e de transmissão de valores e saberes definidos de forma homogénea para todo o país, prefigurando uma concepção curricular uniforme, estática e cumulativa. Este cenário induz a reprodução, pelo que o currículo e os elementos que o configuram são seleccionados e organizados a nível nacional, exigindo-se às escolas e aos professores que cumpram o que está programado.
Numa outra perspectiva, pelo contrário, reconhece-se à escola e aos seus agentes a competência para envolver recursos locais em contextos reais, incorporando a diversidade de situações e a flexibilização de percursos. De facto, os alunos não chegam à escola com mentes vazias, trazem consigo representações do mundo, do núcleo familiar e do grupo social a que pertencem. Os contributos da escola integram-se nas estruturas de pensamento já alicerçadas. Neste sentido, o currículo deve ser transformativo, rico em diversidade, problemática e heurística, constituindo-se, assim, como referente na construção de um ambiente educativo que estimule a exploração e a indagação.
Oscila-se, pois, entre o sentido a dar à acção e a programação coerente dessa acção, entre a utopia e a tecnocracia. Enquanto território educativo, qualquer projecto curricular deve partir da crença de que o desenvolvimento de aprendizagens significativas conducentes ao sucesso passa pela reconstrução do currículo nacional, tendo em conta os contextos de realização. Ao fomentar uma cultura de reflexão e de análise dos processos de ensinar e de aprender, pressupõe o trabalho cooperativo entre os professores, situando estes não apenas no terreno da execução mas também nos da decisão e da organização.
1.2. Construção do currículo e gestão curricular
A proposta de um currículo nacional como projecto social, que funcione como guião prescritivo de todas as aprendizagens, numa lógica normalizadora, não se coaduna nem com a autonomia das escolas, nem com a autoridade profissional dos professores, nem com a aprendizagem significativa num contexto de escola inclusiva (Sola Martínez, 2007).
Todos os alunos do Ensino Secundário têm, actualmente, o Português como disciplina da formação geral. Os professores de Português devem gerir directamente o currículo em sala de aula, tornando-o visível aos alunos, de forma a ser possível vivenciar a operacionalização proposta e articulando-o com características específicas de cada um. O que se pretende é, afinal, que o professor seja capaz de gerir as possibilidades de construir currículo para além do currículo previamente definido.
Ao actuar como gestor curricular nas suas exigentes dimensões, o professor aceita e compreende as propostas que lhe são colocadas de descentralização e autonomia, evitando persistir na uniformização de práticas, valorizando a cooperação, a participação e a inovação. Esta mudança de paradigma implica uma execução activa no sentido da reconstrução, da diferenciação e da adequação curricular, garantindo a todos uma qualidade educativa satisfatória. Ou seja, o professor “de executor passa a decisor e gestor do currículo exercendo a actividade que lhe é própria – ensinar, isto é, fazer aprender” (Roldão, 1999: 48).
O professor tem assumido um estatuto marcado pela dependência de decisões administrativas centrais, pouca intervenção nas decisões relativas ao seu trabalho concreto, repetição de rotinas pré-estabelecidas e pela dependência quase exclusiva de manuais e do trabalho docente não partilhado. Contudo, estão-lhe adstritas algumas características distintivas o poder de decidir e a reflexividade, traduzida na capacidade de analisar e avaliar o desempenho, introduzindo eventuais ajustamentos, o domínio e a produção de saber específico(Giméno Sacristán, 2000).
O objectivo explícito da revisão curricular de 2001 foi o de adequar melhor o currículo às finalidades consignadas na Lei de Bases do Sistema Educativo e ao processo de mudança que se verifica a nível nacional e internacional. A revisão torna-se um "Ajustamento" imposto pelas diversas circunstâncias, contrariando alguns princípios básicos, nomeadamente o da subordinação do secundário às exigências do ensino superior e a ideia de que o currículo deve ser igual para todos.
De igual modo, e de acordo com os princípios expressos pelos documentos que suportam a entrada em vigor da revisão curricular, a coerência entre currículo e avaliação é tida como fundamental, passando a constituir um eixo central neste ajustamento curricular.
Todas as transformações ocorridas afiguravam-se previsíveis, garantindo não só a abertura do sistema educativo e formativo ao mundo exterior, através do reforço das ligações com a sociedade em geral e o mundo do trabalho em particular, mas também uma resposta inequívoca aos novos contextos e aos objectivos estratégicos do Ensino Secundário.
1.3. O Programa de ensino como referencial curricular
Os princípios da revisão curricular apostam em currículos contextualizados, flexíveis, significativos e adaptados às exigências dos novos tempos e conceitos pedagógicos e científicos. No entanto, a integração desses princípios na gramática escolar foram tudo menos pacíficos, sobretudo ao nível da explicitação curricular consubstanciada nos programas de ensino.
Para Amor (1999:35) e Zabalza (2003:16), o programa de ensino é uma peça essencial do currículo, constituindo-se como um seu prolongamento. Assume-se como um referencial genérico de princípios que orientam os propósitos do ensino, definindo, a nível disciplinar, os objectivos, os conteúdos, as estratégias, os recursos e o processo de avaliação, assumindo as directrizes paradigmáticas nas quais se inscreve.
Segundo Roldão (2003), o programa de ensino deve constituir-se como “um plano de acção, um meio para alcançar fins pretendidos seguindo uma dada linha e sequência”(p.28), permitindo ao professor que ensina e ao aluno que aprende situarem-se face às expectativas e exigências que o sistema educativo lhes coloca. Acrescenta que “o programa é um auxiliar da acção, não é um decreto. (…) Um programa não se cumpre, o que se tem de cumprir é o currículo, a aprendizagem para cuja consecução ele foi organizado” (Roldão, 2003:29). A principal função de um programa será, pois, a de materializar as intenções curriculares, tornando-as explícitas, para poderem servir de orientação aos diversos agentes que intervêm na planificação e concretização do processo de ensino e aprendizagem.
Segundo o novo programa, a aula de Português deve gerir a interdependência das diferentes categorias de competências, na procura da construção de sujeitos competentes, capazes de compreender, interpretar e produzir discursos orais e escritos em situações de comunicação diversas, através da ascensão a um estatuto de autonomia progressiva. Este sujeito mobiliza diversas fontes cognitivas em situações complexas, “orquestrando múltiplas operações” (Figueiredo, 2004:37), ou seja, quanto mais competente, mais autónomo.
A inovação nas práticas pedagógicas pretendida no âmbito da revisão curricular e, por extensão, no novo programa de ensino da língua materna, exige a reconfiguração profissional do professor de Português e a consequente concretização de um discurso pedagógico alternativo, configurado a partir de um aparelho conceptual que leva em linha de conta as premissas de uma nova pedagogia, entre as quais se destacam:
Estas premissas, contudo, só produzem sentido quando relacionadas umas com outras. Assim, tentámos estudar os horizontes da sua intervenção em contexto de implementação do novo programa de Português, em escolas secundárias de Sintra.
2. OPÇÕES METODOLÓGICAS
Com este estudo pretendeu-se, por um lado, fechar um ciclo, que passou pela concepção, divulgação, formação, operacionalização e avaliação de um programa de ensino de grande importância e visibilidade na sociedade portuguesa; por outro, motivar melhorias no sistema educativo, pelo contributo que esta análise pode trazer às questões da prática pedagógica na área do Português em particular.
Passados que estão dez anos após a sua introdução no currículo de Português, com as transformações ao nível dos conceitos e das práticas que pretendia suscitar, que impacto concreto terá tido nas escolas, nos professores e nos alunos? Parece ser agora o tempo certo para, de forma lúcida e consistente, seguir as pisadas de quem o vivencia quotidianamente nas escolas, buscando a compreensão do seu processo de apropriação e entender as suas formas de operacionalização.
O problema de investigação inerente a este estudo consiste na averiguação sobre a implementação do Programa de Português do Ensino Secundário, pretendendo conhecer os modos concretos da sua gestão quotidiana nas escolas e o grau de autonomia dos professores e das suas práticas face ao currículo prescrito pela Administração. Foi realizado em nove escolas secundárias do concelho de Sintra, distrito de Lisboa, o segundo maior concelho do país, marcado por grandes assimetrias feitas de comunhão de estilos, tempos, culturas, propostas e paisagens muito diversificadas.
Diferentes procedimentos metodológicos são convocados para resolver o problema educativo em questão. De cada paradigma deriva uma metodologia investigativa e a sua articulação favorece o pluralismo metodológico, integrando instrumentos de índole quantitativa (o questionário) e qualitativo (entrevistas e documentos pedagógicos – planificações e critérios de avaliação). É neste contexto que se enquadra o nosso estudo, na medida em que temos a noção de que a realidade a estudar apresenta múltiplas dimensões e que um método de estudo só por si não daria resposta a todas as questões que essa realidade coloca (tabela 1).
De acordo com os conceitos apresentados por Latorre et al (2005), considerámos:
Tabela 1. Relação entre população, amostra convidada, amostra participante e amostra produtora de dados
População Professores por
escola |
Amostra convidada |
Amostra participante |
Amostra produtora de
dados |
% de participantes
relativamente à amostra convidada |
|||||
Escola 1 - 18 |
18 |
18 |
18 |
16,82 |
|
||||
Escola 2 - 12 |
12 |
12 |
12 |
11,21 |
|
||||
Escola 3 - 12 |
12 |
11 |
11 |
10,28 |
|
||||
Escola 4 - 10 |
10 |
8 |
8 |
7,48 |
|
||||
Escola 5 - 10 |
10 |
8 |
8 |
7,48 |
|
||||
Escola 6 - 12 |
12 |
9 |
9 |
8,41 |
|
||||
Escola 7 - 12 |
12 |
11 |
11 |
10,28 |
|
||||
Escola 8 - 11 |
11 |
9 |
9 |
8,41 |
|
||||
Escola 9 - 10 |
11 |
10 |
10 |
9,35 |
|
||||
Total |
107 |
107 |
96 |
96 |
89,72 |
Fonte: Elaborado pelos autores
O concelho de Sintra foi escolhido de entre os actuais 308 concelhos do país, tendo-se realizado uma selecção:
A opção por duas tipologias de instrumentos prende-se com a natureza eclética da metodologia de investigação (descritiva e interpretativa). O questionário padronizado e realizado em amostra representativa constitui uma forma de recolha de dados transmissora de uma visão geral da realidade, relacionada com os objectivos a atingir. Apesar de facultar uma informação parcial, permite perceber, de forma mais rápida e objectiva, as percepções dos inquiridos. A entrevista e a análise documental são instrumentos de natureza qualitativa que fornecem informação complementar e supostamente mais aprofundada relativamente ao questionário, permitindo o contraste e a interpretação dos resultados constantes dos três instrumentos, de modo a perceber como os sujeitos percepcionam, representam e exploram o currículo prescrito, configurado no programa de ensino e que significado lhe atribuem.
3. RESULTADOS
O tratamento e a análise de dados é fundamental para a concretização de uma investigação, dado permitir o apuramento de conclusões fundamentadas. O tratamento dos dados quantitativos requereu a realização de estatísticas descritivas que permitiram conhecer as características de distribuição da informação recolhida. A sua análise é o processo pelo qual se lhes confere ordem, estrutura e significado para, posteriormente, os transformar em conclusões úteis e credíveis do ponto de vista científico. Realizámos a descrição dos resultados das variáveis demográficas e estabelecemos correlações entre as várias escalas do questionário e entre algumas das variáveis demográficas e as escalas do questionário.
Na tabela 2, sintetizam-se os dados significativos encontrados no cruzamento entre as variáveis demográficas e os resultados do questionário organizados na dupla vertente “Pressupostos curriculares percepcionados no Programa” e “Concepção estratégica do ensino-aprendizagem”. Os aspectos recorrentes encontram-se assinalados com o mesmo número, o que pressupõe correlação entre as variáveis.
A correlação entre as variáveis demográficas e os resultados do questionário evidencia não haver total conformidade entre as percepções dos professores relativas ao currículo prescrito e as suas crenças acerca da forma como ele deve ser abordado, por um lado, e a forma como concebem o processo de ensino e aprendizagem, por outro. Veja-se o exemplo da variável demográfica “Formação Profissional” que revela não haver correspondência entre o que os professores percepcionam no Programa e o modo como o implementam.
Quanto à análise de dados qualitativos foi realizada através da conexão interactiva de três tipos de actividades: redução dos dados, apresentação/exposição e interpretação/extracção das conclusões. O procedimento de análise organizou-se em torno de um processo de categorização que consiste numa operação de classificação de elementos por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo a analogia entre eles. As categorias são rubricas que reúnem um grupo de unidades de registo sob um título genérico, em função das suas características comuns. Adopta-se o critério de categorização semântico, supondo que a decomposição-reconstrução desempenha uma função na indicação de correspondências entre as mensagens e a realidade a que reportam.
O protocolo de triangulação utilizado nesta investigação é o da triangulação metodológica, que compreende o emprego de mais de um método na persecução dos objectivos. Destacam-se, de seguida, os aspectos convergentes e os aspectos divergentes que ressaltam nesta triangulação.
Tabela 2. Dados significativos na correlação entre as variáveis demográficas e os resultados do questionário
Variáveis demográficas |
Resultados do
questionário |
|
Pressupostos
curriculares |
Concepção estratégica
do ensino-aprendizagem |
|
Género |
1. as professoras concordam mais que o Programa
permite o desenvolvimento de competências e valores 2. as professoras valorizam mais a aprendizagem
e a avaliação do funcionamento da língua em contexto |
1. as professoras têm mais como referência as
sugestões metodológicas/estratégias do Programa 1. as professoras planificam mais as diferentes
modalidades de avaliação e programam mais estratégias, técnicas e
instrumentos de avaliação diversificados e integrados na aprendizagem 3. as professoras valorizam mais frequentemente
as competências nucleares na organização do processo de avaliação 4. as professoras consideram mais que o seu
processo de avaliação é diversificado e integrador |
Idade |
5. a idade não influencia a percepção relativa
aos pressupostos curriculares |
1. os professores maiores de 49 anos adequam
mais o currículo ao contexto 4. os professores maiores de 49 anos consideram
mais que o seu processo de avaliação é diversificado e integrador |
Habilitações académicas |
1. os professores com mestrado concordam mais do
que os pós-graduados que o Programa se insere nos princípios orientadores da
revisão curricular 6. os professores com mestrado valorizam mais do
que os pós-graduados o processo na aprendizagem e avaliação da escrita |
3. os professores com mestrado valorizam mais
frequentemente do que os pós-graduados
as competências nucleares na organização do processo de avaliação |
Tempo de docência |
6. os professores com mais tempo de docência
valorizam mais o processo na aprendizagem e avaliação da escrita 2. os professores com mais tempo de docência
valorizam mais a aprendizagem e da avaliação do funcionamento da língua em
contexto |
5. o tempo de docência não influencia a
concepção estratégica do ensino e da aprendizagem |
Formação Profissional
Inicial |
7. os professores com estágio integrado
concordam mais do que os profissionalizados em serviço que o Programa
valoriza os paradigmas construtivistas |
5. a formação profissional inicial não
influencia a concepção estratégica do ensino e da aprendizagem |
Formação Profissional
Contínua |
7. os professores com formação em implementação
do Programa de Português do Ensino Secundário consideram que o Programa
valoriza os paradigmas de aprendizagem construtivistas |
5. a formação profissional contínua não
influencia a concepção estratégica do ensino e da aprendizagem |
Fonte: Elaborado pelos autores
3.1. Aspectos convergentes obtidos na triangulação metodológica
Na tabela 3, elencam-se os aspectos preponderantes encontrados na triangulação, que mostram a convergência das crenças e/ou das práticas dos professores relativamente a determinados domínios do ensino-aprendizagem do Português.
Tabela 3. Aspectos convergentes obtidos na triangulação metodológica
ASPECTOS |
Q |
E |
D |
Articulação existente entre o Programa de ensino e os
seus documentos legais enquadradores |
X |
X |
|
Mudanças significativas do Programa de
ensino face a programas anteriores |
X |
X |
|
Paradigma construtivista subjacente às
propostas do Programa |
X |
X |
|
Importância atribuída pelo Programa às
competências e aos conteúdos processuais |
X |
X |
|
Atribuição de importância às competências
funcionamento da língua e expressão oral formal, pela relevância que o
Programa lhes atribui |
X |
X |
|
Importância atribuída pelo Programa a
metodologias activas que transformem o aluno no construtor do seu próprio
saber |
X |
X |
|
Desenvolvimento de processos de
regulação do ensino e da aprendizagem |
X |
X |
X |
Desvalorização do envolvimento dos
alunos na deliberação curricular |
X |
|
X |
Visão pouco integradora do currículo,
mostrando tendência para a descontextualização dos conteúdos e para a
ausência de tarefas complexas que integrem várias competências em interacção |
X |
X |
X |
Pouca importância atribuída à equidade
na avaliação das competências |
X |
|
X |
Avaliação sumativa externa condiciona a
gestão curricular (nomeadamente o trabalho sobre a competência de oralidade,
flexibilidade, contextualização) e o processo de avaliação (ponderação das
competências, contextualização), restringindo as práticas |
|
X |
X |
Valorização de mediadores do currículo,
como os manuais e os exames, o que compromete a gestão curricular |
|
X |
X |
Fraco investimento didáctico revelado na
mobilização dos conteúdos processuais, sobretudo ao nível do trabalho no
âmbito das competências de oralidade |
X |
X |
X |
Pouca adesão a estratégias sugeridas
pelo Programa, por exemplo, oficina de escrita, que aparece pouco
referenciada |
X |
|
X |
Relevância atribuída aos conteúdos
declarativos prescritos, sobretudo os de leitura |
X |
X |
X |
Reconhecimento das tipologias textuais
como elemento importante a trabalhar, fazendo a maioria das escolas
corresponder pontualmente as sequências de ensino-aprendizagem às tipologias
textuais |
X |
|
X |
Gestão integrada das competências no
processo de ensino-aprendizagem, à excepção da competência de oralidade que é
entendida como um caso à parte |
X |
X |
|
Preferência por estratégias e instrumentos
de avaliação formais, uniformizadores e descontextualizados, numa lógica de
aplicação e de não diferenciação |
X |
X |
X |
Fonte: Elaborado pelos autores Nota: Q:questionário, E:entrevista, D:documentos
Verificamos que a presença de alguns desses aspectos é recorrente em todos os instrumentos utilizados no estudo:
Na tabela seguinte, elencam-se os aspectos preponderantes encontrados na triangulação, que mostram a divergência das crenças e/ou das práticas dos professores relativamente a determinados domínios do ensino-aprendizagem do Português (tabela 4).
Tabela 4. Aspectos divergentes obtidos na triangulação metodológica
Questionário |
Entrevistas |
Documentos |
Não percepção das potencialidades do
Programa ao nível da contextualização nas suas múltiplas dimensões |
Percepção de mudanças positivas na
liberdade de gestão proporcionada pelo Programa ao nível da contextualização |
|
Crença de que o Programa não assegura
uma cultura literária canónica |
Valorização da leitura literária em
contexto de contrato de leitura, do texto literário como objecto estético e
da cultura literária é referida como principal característica do Programa |
|
Não valorização das características do
paradigma construtivista nas propostas do Programa ao nível da
contextualização nas suas múltiplas dimensões |
os professores reconhecem o paradigma
construtivista subjacente às propostas do Programa |
Não valorização das características do
paradigma construtivista nas propostas do Programa ao nível da contextualização
nas suas múltiplas dimensões |
Reconhecimento da importância das
competências no desenvolvimento do ensino-aprendizagem |
Reconhecimento da importância das
competências no desenvolvimento do ensino-aprendizagem |
As competências transversais não são valorizadas,
primando pela ausência |
Reconhecimento da importância atribuída
pelo Programa a metodologias activas que transformem o aluno no construtor do
seu próprio saber |
Reconhecimento da importância atribuída
pelo Programa a metodologias activas que transformem o aluno no construtor do
seu próprio saber |
Ausência desse perfil de aluno nas
planificações |
Crença na importância dos processos, da
contextualização e no contributo do desenvolvimento de competências para a
aprendizagem do Português, por oposição à centralidade dos conteúdos |
Crença na importância dos processos, da
contextualização e no contributo do desenvolvimento de competências para a
aprendizagem do Português, por oposição à centralidade dos conteúdos |
As opções curriculares correspondem a um
paradigma uniformizador, que valoriza os conteúdos como referentes
curriculares preferenciais e eixo estruturador do currículo |
Valorização das competências como matriz
organizadora do currículo |
Defesa da Literatura e da História da
Literatura como eixo organizador do ensino-aprendizagem do Português |
Defesa da Literatura e da História da Literatura
como eixo organizador do ensino-aprendizagem do Português |
Crença no paradigma de avaliação
subjacente ao processo de ensino-aprendizagem |
Crença no paradigma de avaliação
subjacente ao processo de ensino-aprendizagem |
Valorização de um paradigma de avaliação
numa lógica de acumulação e não emergindo do próprio processo de aprendizagem |
Valorização das competências nucleares na
organização do processo de ensino-aprendizagem e de avaliação |
Valorização das competências nucleares na
organização do processo de ensino-aprendizagem e de avaliação |
Apenas duas escolas o evidenciam nos documentos |
Constatação do não envolvimento frequente dos
alunos em processos de aperfeiçoamento e de superação de lacunas |
Crença e implementação de estratégias de
superação das dificuldades dos alunos |
Ausência de princípios e/ou estratégias
conducentes à superação do erro e/ou das dificuldades dos alunos |
|
Reconhecimento da importância da colegialidade e
da construção curricular como estratégias de aproximação dos professores ao
Programa e da colegialidade como fundamento das práticas induzidas pelo
Programa |
Aparente ausência de deliberação em questões de
deliberação curricular e de escassa interacção ao nível do grupo disciplinar |
Elevado grau de reconhecimento da importância de
uma avaliação autêntica |
Elevado grau de reconhecimento da importância de
uma avaliação autêntica |
Ausência do princípio de autenticidade nas
práticas preconizadas |
Envolvimento dos alunos na avaliação do seu
desempenho e/ou nos dos colegas como mecanismo de aprendizagem |
Envolvimento dos alunos na avaliação do seu
desempenho e/ou nos dos colegas como mecanismo de aprendizagem |
Escassa previsão de trabalho colaborativo, de
interacção e da auto e da co-avaliação |
Fonte: Elaborado pelos autores
A tabela evidencia os resultados divergentes verificados na triangulação dos instrumentos utilizados para a recolha de informação, dos quais destacamos os seguintes pela sua relevância:
O tratamento e análise de dados é um trabalho complexo, resultante de uma grande amplitude de informações e de procedimentos e, de acordo com Colás Bravo (1998) “da inexistência de guias procedimentais precisas e concretas” (p. 276). A partir dos resultados significativos para a investigação, propõem-se inferências e interpretações que se coadunam com os objectivos previstos. Nesse sentido, sublinha-se a necessidade de verificação das conclusões seguindo-se critérios e procedimentos de credibilidade para produzir constatações e inferências com garantias de verosimilhança (Colás Bravo: 1998). Os resultados especificados motivaram as conclusões que a seguir se apresentam.
4. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Globalmente podemos afirmar que a interpretação, enquanto componente de análise, começa por ser redutora para, em seguida, “ser criadora através da elaboração de explicações e de novas questões que transcendem a secura dos resultados”(Van der Maren, apud Lessard-Hébert e al, 2005:123). Nesta linha de pensamento encontrámos dados significativos que nos levaram a revisitar a literatura de referência para procurar enquadramento amplificador das inferências realizadas.
As perspectivas de ensino do Português sofreram alterações ao longo das últimas décadas que não foram reconhecidas de igual modo pelos professores desta disciplina. As tendências de reconceptualização do ensino secundário na área do Português configuram não só um afastamento teórico relativamente ao discurso antecedente como a emergência de práticas pedagógicas mais consentâneas com a modernidade conceptual bem patente na investigação e literatura de referência.
O presente trabalho pretende potenciar uma reflexão mais consciente sobre os modos de implementação dos programas de ensino em Portugal, concretamente na área do Português, verificando as opções curriculares dos professores e o seu impacto nas práticas pedagógicas. Os resultados obtidos nos questionários, nas entrevistas e na observação de documentos pedagógicos como as planificações e os critérios de avaliação, a sua análise e as inferências realizadas permitiram-nos chegar a determinadas conclusões sobre a implementação do texto programático em escolas secundárias do concelho de Sintra. O confronto desses resultados com os objectivos específicos da investigação inicialmente concebidos, permite-nos concluir que os mesmos foram atingidos, contribuindo para uma abordagem mais fundamentada da questão em estudo.
Assim, salientamos as conclusões relativas aos objectivos de investigação a que nos propusemos:
Em suma, os resultados levam a reconhecer uma contradição entre as percepções dos professores e as suas práticas relativamente aos paradigmas curriculares, à gestão do ensino e da aprendizagem no que concerne a mobilização de competências e estratégias e ao papel da deliberação e da contextualização no planeamento didáctico.
Globalmente, os professores demonstram consciência da importância das competências, sobretudo das nucleares, como elemento matricial do currículo de Português do ensino secundário, embora essa consciência nem sempre se traduza numa gramática concreta para a sua implementação. De facto, constata-se que as competências são entendidas de forma redutora e sempre dependente dos conteúdos, tomados como um fim em si e privilegiados em todas as acções de planeamento didáctico. Destes, são alvo da preferência dos professores os conteúdos de leitura numa lógica de afunilamento do currículo em função da avaliação externa ou do que os professores entendem ser as suas premissas. Por estas razões não se vislumbra uma verdadeira integração das competências, na medida em que existe claramente um menosprezo das competências de compreensão e expressão oral, cuja didáctica se revela em desconformidade com os desígnios programáticos. Por outro lado, o pensamento reflexivo e a metacognição estão confinados à competência funcionamento da língua, à qual os professores conferem um estatuto diferenciado por reconhecerem uma terminologia específica cuja introdução no currículo é recente.
O irregular investimento no desenvolvimento de competências torna-se evidente quando se trata das competências transversais, especialmente a estratégica e a de formação para a cidadania. A primeira não está contemplada no planeamento didáctico e a segunda, apesar de surgir referida em alguns dos documentos analisados, é entendida como um mero cumprimento de regras que asseguram o bom funcionamento da aula, espelhando uma concepção de escola como um micro–cosmos da sociedade, uma espécie de tubo de ensaio do exercício da cidadania, focado em comportamentos tipificados.
Este facto tem também o seu reflexo na aparente negligência dos conteúdos processuais salientada nos instrumentos da investigação. Alegando falta de tempo e/ou a não expressão directa destes conteúdos em contexto de avaliação externa, os professores parecem não reconhecer a sua imprescindibilidade como objecto de leccionação, o que, de algum modo, cria constrangimentos a uma pedagogia baseada no desenvolvimento de competências, ao saber em uso.
A selecção de estratégias de aprendizagem apenas pontualmente se ajusta às sugestões do Programa, na medida em que os professores optam por um ensino cumulativo, tendencialmente orientado para o cumprimento de listagens de conteúdos e organizado em micro-sequências de actividades mais ou menos dinâmicas e interactivas. Longe está o horizonte das situações de aprendizagem integradoras, complexas e autênticas, nas quais é possível mobilizar e transferir conhecimentos em interacção.
No âmbito da avaliação, privilegia-se as estratégias de replicação, num cenário de formalismo e de uniformização. Os instrumentos de avaliação são recursos utilizados para obter informação que qualifique os resultados de aprendizagem, ao invés dos processos. Estão praticamente limitados ao uso de testes e outros instrumentos de natureza psicométrica, para os quais os alunos são adestrados.
A deliberação curricular opera-se sobretudo em zonas do currículo que podem comprometer os resultados socialmente mais visíveis e com mais impacto, como os dos exames nacionais, zonas essas que corresponderiam a um trabalho mais consistente sobre a oralidade e os conteúdos processuais. Parece, contudo, não haver deliberação docente em zonas do currículo onde ela é suscitada, como é o caso de escolha de obras literárias, parecendo manifestar-se uma tendência generalizada para seguir mediadores do currículo como os manuais escolares.
No planeamento didáctico transparece fraco investimento nos processos de contextualização em todas as suas dimensões, configurando um quadro de uniformização e massificação, induzido pela gramática escolar e por uma certa resistência à inovação, que persiste na concepção do indivíduo como algo de abstracto, sem história e sem raízes.
As percepções dos professores relativamente ao Programa situam-se num paradigma construtivista, alicerçadas na ideia de que o professor deve criar situações que constituam oportunidades para os alunos construírem os seus saberes; as práticas, contudo, situam-se explicitamente num paradigma alicerçado nos conceitos de uniformização, formalismo, replicação, explicitação de conteúdos, treino através de exercícios de aplicação de conhecimentos, enfoque em conteúdos, assimilação, sistematização. No fundo, acredita-se que, por repetição de um estímulo se produz uma resposta, formando-se um vínculo de aprendizagem igual para todos e relativamente ao qual todos devem dar uma resposta única.
Esta visão exclui a contextualização como elemento integrante e essencial da aprendizagem, na medida em que não é reconhecido que cada aluno interage de forma particular com o saber, seja pela importância dos conhecimentos que já possui e que são a base das futuras aprendizagens, seja pela participação activa e focalizada na construção dos conhecimentos em novas situações de aprendizagem. Pelo contrário, o paradigma de ensino que os professores reconhecem no texto programático, o construtivismo, implica a adopção de uma aprendizagem significativa, determinada pelo compromisso entre as concepções prévias e os novos conhecimentos numa construção pessoal do saber.
Na concepção programática, acredita-se que quem aprende está apto a construir significados, não assumindo apenas o papel de reprodutor do que lê ou ouve mas mobilizando formas de estruturação do pensamento e de reconstrução de conceitos e de processos, suplantando os conflitos cognitivos inerentes e construindo um contexto personalizado e único de aprendizagem. Pelo contrário, as práticas docentes demonstram uma clara sujeição do seu trabalho pedagógico-didáctico e do aluno em geral às opções curriculares e de organização prescritas quer externamente quer internamente.
Por último, através deste trabalho de investigação foi possível caracterizar as práticas docentes relativamente às formas de implementação do Programa de Português, o currículo em acção, em contraponto com as directrizes da tutela, o currículo prescrito, prefigurando uma cultura escolar enraizada na tradição e resistente à mudança.
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