REICE 2015 - Volumen 13, Número1
O CHOQUE COM A REALIDADE: DORMI CONTADOR E ACORDEI PROFESSOR...

INTRODUÇÃO

O contexto atual é marcado por aceleradas mudanças econômicas, sociais, políticas, culturais e éticas que repercutem em várias esferas da vida social. São exemplos de áreas impactadas por essas mudanças a organização do trabalho, as formas de produção e a formação profissional. Como parte desse contexto, as escolas também são afetadas, notadamente, o exercício profissional dos professores, pois o contexto social mais amplo demanda sólidas formações cultural e científica para que o estudante possa pensar e intervir na realidade. São requeridos meios pedagógico-didáticos para o domínio de competências cognitivas que levem o estudante a “aprender a pensar”. Ainda, é premente o fortalecimento da subjetividade dos alunos e a ajuda na construção de sua identidade pessoal, dentro do respeito à diversidade social e cultural, bem como a formação para a cidadania participativa (Libâneo, 2009).

Nesse contexto, quando se busca o aprimoramento da qualidade do ensino superior, observa-se a necessidade de analisar a formação inicial dos professores e sua inserção na profissão docente. Pois esse momento é crucial na vida de um professor. É nessa etapa da carreira profissional que poderá ocorrer o “choque com a realidade”, que se refere às dificuldades encontradas no exercício da docência nos primeiros anos de atividade.

A respeito do ingresso na docência, Sacristán (1998) afirma que o professor passa, sem um processo de transição, da experiência passiva como aluno ao comportamento ativo como professor, sem que lhe seja colocado, em muitos casos, o significado educativo, social e epistemológico do conhecimento que transmite ou que permite seus alunos aprenderem. É dessa transformação instantânea que nasceu uma expressão bastante utilizada no meio educacional: “o sujeito dorme contador (ou advogado, médico, engenheiro, bacharéis de modo geral) e acorda professor” como em um “passe de mágica”, sem que haja um momento preparatório que lhe permita desenvolver a competência pedagógica. Como poderá ser visto adiante, esse entendimento também foi constatado em pesquisas empreendidas no ensino da Contabilidade.

O desenvolvimento profissional e o estudo do ciclo de vida do professor é um tema que tem recebido a atenção de muitos estudiosos da área educacional (Araújo, Lima, Miranda e Oliveira, 2013; Gonçalves, 2009; Huberman, 2000; Jesus e Santos, 2004; Veenman, 1984). As pesquisas iniciais sobre a temática foram realizadas por Huberman (2000), cujo trabalho evidencia a trajetória do docente, caracterizando as fases/etapas bem definidas da carreira.

Por ser quase inexistente a literatura sobre “choque com a realidade” na área contábil, o presente trabalho tem o intuito de aprofundar o conhecimento sobre a temática, mediante a seguinte questão de pesquisa: quais contornos o “choque com a realidade” adquire no ensino de Contabilidade no Brasil? O objetivo geral da pesquisa é descrever os principais problemas enfrentados pelos docentes no início de sua carreira, ou seja, nos três primeiros anos em que esses atuam como professores/as.

A relevância em estudar essa primeira fase da profissão justifica-se pela necessidade de elucidar os principais problemas enfrentados pelos docentes em início de carreira, o que poderá contribuir para a implantação de programas de formação inicial e continuada a fim de minorar tais dificuldades. Quando se focaliza a área contábil, a pesquisa também se justifica pela escassez de estudos sobre essa temática, notadamente, em um momento em que a Contabilidade vive profundas transformações, dentro de sala de aula e na atuação profissional.

Para realizar esta investigação, serão apresentadas, inicialmente, as fases do ciclo de vida docente conforme autores da área educacional. Em seguida, será feita uma incursão na problemática da formação do docente do ensino superior, passo necessário para a compreensão do quadro atual. Posteriormente, é apresentado o método da pesquisa. Finalmente, são colocados e discutidos os principais problemas percebidos pelos docentes no ensino de Contabilidade no Brasil.

1. PLATAFORMA TEÓRICA

1.1. Ciclo de vida dos professores

Conhecer as fases de vida da carreira do docente tem sido foco de muitas pesquisas. Contribuições importantes para a melhor compreensão da vida do docente têm vindo por meio desses estudos, que renovam as teorias e as pesquisas na área da formação profissional (Burnier, Durães, Paz, Silva e Silva, I., 2007).

Um importante trabalho empírico sobre o ciclo de vida do docente foi realizado por Huberman (2000), na Suíça, com o objetivo de evidenciar as fases de vida dos profissionais que atuavam no ensino médio, naquela época. Embora a pesquisa se refira a professores do ensino secundário, essa se mostra relevante para o entendimento das percepções vivenciadas pelos professores ao longo de sua vida profissional.

De acordo com esse estudo, a carreira profissional docente apresenta cinco fases, conforme evidenciadas na figura 1.

Figura 1. Fases do ciclo de vida do professor

Fonte: Adaptado de Huberman (2000:47).

A primeira fase, denominada “entrada na carreira”, inicia-se no primeiro e vai até o terceiro ano da carreira profissional. É a fase do entusiasmo, pois o professor faz grandes descobertas diante do novo mundo que se descortina. Para Huberman (2000:39), “o aspecto da ‘descoberta’ traduz o entusiasmo inicial, a experimentação, a exaltação por estar, finalmente, em situação de responsabilidade”. Mas essa é também a fase da sobrevivência, pois é nesse período que os problemas podem ser maiores, principalmente, quando não há o preparo adequado do profissional para atuação na docência, carga horária excessiva, dificuldades de relacionamento, aspectos que caracterizam o “choque com a realidade”.

A segunda etapa é a de “estabilização”, que ocorre no período entre 4 a 6 anos da carreira profissional. É a fase na qual o profissional adquire estabilidade profissional, tem mais responsabilidades e maior segurança em relação à profissão escolhida. Nessa etapa, o profissional experimenta um sentimento crescente de competência pedagógica, adquire maior capacidade de relacionamento com os alunos e maior domínio de materiais e técnicas pedagógicas. É também o período de independência e posicionamento do professor, quando faz escolhas, como, por exemplo, pertencer a um corpo docente, posicionamento político, etc. Nessa fase, os docentes já começam, também, a pensar em promoções na carreira (Huberman, 2000).

A terceira etapa é a de “diversificação” ou “questionamento”. Essa fase se inicia aos 7 anos e vai até os 25 anos de carreira, tendo o maior tempo de duração de todas as fases. Nas etapas anteriores, os percursos profissionais dos professores são muito parecidos, porém dessa fase em diante esses costumam divergir. Alguns docentes tornam-se mais seguros e experimentam diversificar materiais didáticos e métodos de ensino novos em sala de aula. Entretanto, outros podem, ao invés de diversificar suas atividades, entrar na fase do questionamento, conforme mostra a figura 1. Nessa perspectiva, o docente apresenta uma gradativa redução de seus compromissos profissionais. O professor faz uma análise da sua vida, de suas metas cumpridas e a serem cumpridas, questionando todas as alternativas que possui nesse período. Alguns chegam a abandonar a docência ou passam a se dedicar a atividades paralelas.

A quarta fase depende da escolha feita na fase anterior vivida pelo profissional, conforme ilustrado na figura 1. Se a escolha anterior foi diversificar, o docente inicia o processo de serenidade e distanciamento afetivo, começando a se afastar da escola, dos alunos e dos trabalhos assumidos anteriormente. As diferenças de geração existentes entre o professor e aluno contribuem para esse distanciamento, pois dificultam o diálogo entre eles. Mas o docente passa por essa situação de forma natural, tranquila e serena. Por outro lado, caso o professor tenha passado pela fase de questionamento, inicia-se, nesse momento, a fase de conservadorismo, e o profissional entra em um colapso de lamentações e resistência a mudanças. Queixa-se de quase tudo. Reclama dos alunos por serem menos disciplinados, dos colegas (principalmente, os mais jovens), das políticas educacionais, do ambiente de trabalho, etc. A duração dessa fase compreende o período dos 25 aos 35 anos da carreira do docente.

Por fim, Huberman (2000) descreve a fase do desinvestimento, que tem a duração dos 35 aos 40 anos de experiência. É quando o professor está no fim de sua carreira e inicia o processo de saída da profissão. Para Huberman (2000:50), esse “é o momento de as pessoas encararem a sua própria vida como ‘inevitável’, como uma vida única, que teria de acontecer assim e que é preciso aceitar como tal”. Isso implica, para os professores, que essa fase é marcada pela liberação progressiva do investimento no trabalho para se dedicarem mais a si próprios. De acordo com as tendências anteriores, a fase do desinvestimento pode ser serena ou amarga. Se o docente passou pela fase do questionamento seguida da serenidade, o desinvestimento será sereno. Se, ao contrário, passou pela fase do questionamento seguida do conservadorismo, a saída será amarga.

Observa-se que, após o clássico trabalho de Huberman (1989), surgiram diversas pesquisas sobre a carreira do professor, com o objetivo de complementar a aprofundar a temática. Na mesma direção do estudo de Huberman (1989), Gonçalves (2009) também classificou as fases de vida dos docentes em cinco etapas: início, estabilidade, divergência positiva ou negativa, serenidade, renovação do interesse ou desencanto. Gonçalves (2009) interpreta a fase inicial como o balanço entre a busca da “sobrevivência”, diante do “choque da realidade” e o entusiasmo, caracterizado pelo descobrimento da realidade profissional a ser vivida. O tempo dessa fase, segundo Gonçalves (2009), compreende de 1 a 4 anos.

Já a segunda fase, considerada como estabilidade, está inserida no período entre 5 e 7 anos da vida profissional. É a fase em que a confiança é crescente na vida do professor. Nesse momento, as tarefas difíceis e complicadas do início de carreira já não são problemas, e sim, um contentamento, por serem superáveis (Gonçalves, 2009). A terceira fase compreendida nesse estudo é a de divergência, que se caracteriza por ser conflitante, pois alguns profissionais permanecem investindo com muito entusiasmo na carreira docente, e outros docentes iniciam uma fase de insatisfações. Essa fase compreende de 8 a 14 anos de docência. A quarta fase é denominada serenidade. Nesse período, a satisfação individual e profissional torna-se presente, permitindo maiores reflexões ao docente (Gonçalves, 2009). A última fase é considerada como a renovação do “interesse” e desencanto. Nessa etapa, alguns profissionais ainda têm o potencial de continuar investindo na carreira, enquanto outros, não, pois estão esperando, ansiosamente, a aposentadoria. Essa fase compreende de 23 a 31 anos da carreira profissional do docente.

Como observado, existem diferenças e semelhanças importantes entre os estudos apresentados. Hubermam (2000) compreende fases finais com tempo de duração maior, discorrendo os problemas enfrentados em cada uma delas. Já a pesquisa de Gonçalves (2009) modifica alguns períodos, considerando mais os sentimentos e as reações dos docentes. No entanto, ambas apontam a fase inicial como um período dramático no exercício da profissão. Jesus e Santos (2004), a fim de realizar um retrospecto crítico, também se interessaram em investigar a profundidade das pesquisas sobre o ciclo de vida docente. Os autores constataram que a maioria dos estudos identifica o início da carreira como uma fase importante, sendo considerada problemática, notadamente quando as idealizações da profissão se chocam com a realidade do dia a dia do trabalho, culminando com “o choque com a realidade”.

Araújo e colaboradores (2013) realizaram um estudo com docentes da área contábil com o objetivo de identificar quais eram os principais problemas enfrentados por esses profissionais. Os resultados da pesquisa indicam que os maiores problemas que inquietam a maioria dos docentes são: “falta de motivação dos alunos”, “heterogeneidade das classes” e “quantidade de trabalhos administrativos”. Ainda evidenciam que esses problemas são percebidos mais fortemente na fase inicial da carreira do docente e tendem a diminuírem de importância, gradativamente, ao longo da vida profissional.

Esses achados evidenciam a relevância de maiores esclarecimentos sobre a fase inicial da carreira docente. É o que se pretende fazer, na próxima seção.

1.2. De aluno a professor: “o choque com a realidade”

Mellowki e Gauthier (2004:543), ao destacarem a complexidade da profissão docente, utilizam as palavras de Barlow (1999) as quais ilustram com clareza os atributos necessários ao docente ideal.

O ensino é uma profissão tão paradoxal que quem a exerce deveria possuir, ao mesmo tempo, as qualidades de estrategista e de tático de um general do exército; as qualidades de planejador e líder de um dirigente de empresa; a habilidade e a delicadeza de um artesão; a destreza e a imaginação de um artista; a astúcia de um político; o profissionalismo de um clínico geral; a imparcialidade de um juiz; a engenhosidade de um publicitário; os talentos, a ousadia e os artifícios de um ator; o senso de observação de um etnólogo; a erudição de um hermeneuta; o charme de um sedutor; a destreza de um mágico e muitas outras qualidades cuja lista seria praticamente ilimitada. (pp. 145-146)

Essas qualidades se remetem à multiplicidade de tarefas do trabalho cotidiano do docente, pois o contexto de aceleradas mudanças que se vive provoca sérios rebatimentos no processo de ensino aprendizagem. No ensino de contabilidade, mais especificamente, cabe refletir sobre o perfil do estudante atual, as mudanças que estão ocorrendo na própria contabilidade e a formação do docente envolvido nesse “drama”.

A geração de estudantes que chega à academia nos dias de hoje possui características bastante distintas e que devem ser consideradas para alcance dos propósitos de aprendizagem. Os mais jovens estão acostumados a potentes videogames, celulares, e conectados à internet várias horas do dia. Mergulhados em informações, eles são capazes de realizar várias atividades ao mesmo tempo, pois adquiriram uma forma de pensar bastante diferente daquela de estudantes de uma década atrás. Assim, demandam novas abordagens; “saliva e giz” não são suficientes para prender a atenção desse público dinâmico.

Mas também chegam ao ensino superior pessoas mais velhas que, com a expansão do ensino superior ocorrida nas últimas décadas, têm finalmente a chance de cursar uma faculdade. Esses requerem mais atenção e esperam o ensino em estreita ligação com a prática. Esses diferentes públicos se mesclam e compõem as classes dos cursos de Ciências Contábeis, desafiando a capacidade e habilidade dos docentes. Além disso, a época atual é marcada por mudanças radicais nos processos contábeis no Brasil e no mundo.

Como se observa, o desenvolvimento da Contabilidade atinge maior expressividade quando há desenvolvimento econômico. Isso ocorreu na Itália dos mercadores no século XV, nos Estados Unidos, no século XX, com as megacorporações e, em nível internacional, na contemporaneidade, com o fenômeno da globalização. Pode-se dizer que a globalização no âmbito contábil é representada pela convergência dos padrões internacionais de Contabilidade. No Brasil, a internacionalização da Contabilidade começou a se materializar com a aprovação da Lei 11.638, em 28 de dezembro de 2007, que fez várias alterações na Lei das Sociedades Anônimas de 1976, em direção à adoção dos padrões internacionais (IFRS). Para Miranda (2010), o contador que irá atuar no contexto das normas internacionais demandará, além da capacidade técnica, a capacidade de entender e julgar os critérios, de interpretar normas e princípios, pois, sendo normas de amplitude planetária, essas estabelecem critérios amplos, deixando as especificidades a cargo do julgamento dos profissionais. Consequentemente, crescem os níveis de subjetividade e responsabilidade por parte dos contadores.

Esse quadro demonstra a necessidade de um docente semelhante àquele proposto por Barlow (1999), acima citado. No entanto, como se sabe, “muitos profissionais dormem contadores e acordam professores” (Behrens (2011) afirma que os professores “profissionais liberais” ingressam no ensino universitário em função de sua destacada atuação profissional, sucesso e qualificação que possuem enquanto profissionais em sua área específica de conhecimento, mas “nunca fizeram uma formação pedagógica e se aventuram numa docência do ensaio e erro por muitos anos” (p. 444). Esta visão é corroborada por vários estudiosos das áreas educacional e contábil (Gatti, 2010; Imbernón, 2011; Isaia, 2006; Lapini, 2012; Miranda 2010; Silva e Costa, 2013; Soueneta, 2014; Vasconcelos 2009).

Silva (1997) esclarece que o docente no início de carreira teme a falta de adequação de seus modos de pensar e agir perante seus pares, não sabe a quem pedir ajuda, nem como pautar seus procedimentos, “é como se, da noite para o dia, deixasse subitamente de ser estudante e sobre os seus ombros caísse uma responsabilidade profissional, cada vez mais acrescida, para a qual percebe não estar preparado” (p. 53). Essa situação é ainda mais difícil em cursos para os quais não há qualquer tipo de preparação sistematizada para o exercício da docência. Entre esses cursos, destaca-se o de Ciências Contábeis (Miranda, 2010).

Segundo Marcelo (1998), os anos iniciais de ensino são, notadamente, relevantes, pois os educadores buscam alcançar a transição de estudantes a professores e, nesse momento, surgem questionamentos e tensões, necessitando os docentes adquirir conhecimento e competência profissional em um determinado período de tempo. Para o autor, os professores, nesse momento, são principiantes à procura sua própria identidade individual e profissional.

O fato é que o ingresso na carreira docente aponta muitas dificuldades. Na literatura, são encontradas algumas expressões que procuram traduzir tais obstáculos, como “choque de transição”, “iniciação ao ensino” (Marcelo, 1998), e as expressões mais populares: “choque com a realidade” e “choque de realidade”. Esse último termo foi citado primeiramente por Kramer (1974) e, posteriormente, consagrado por Veenman (1984) e outros autores (Arends, 1995; Gonçalves, 2009; Huberman, 1989; 2000; Jesus e Santos, 2004; Nascimento e Graça, 1998; Silkes, 1985; Silva, 1997; Smith, 1994).

Para Silva (1997), “a expressão ‘choque com a realidade’, aplicada aos professores em início de carreira, traduz todo o impacto por eles sofrido quando iniciam a profissão e que poderá perdurar por um período de tempo mais ou menos longo”(p. 54). No início da carreira, o jovem professor depara-se com maiores responsabilidades e com a necessidade de desapegar-se de muitas imagens construídas quando aluno. Esses impasses e desafeições tornam complicados os primeiros anos da sua carreira profissional.

Já Gonçalves (1995) entende que “o choque com a realidade é a sensação de que não se encontrava devidamente preparada (o docente) para o desempenho profissional, parece ter condicionado a continuidade da motivação para a profissão” (p. 130).

Para Veenman (1984), o “choque de realidade” marca o corte entre os ideais que precederam a entrada na profissão e a dura realidade em uma sala de aula, não podendo circunscrever-se a um período limitado de tempo, podendo se tornar um processo complexo e prolongado. Segundo o autor, o “fenômeno” aponta cinco características próprias, sendo elas: (1) percepção dos problemas: que inclui pressões e reclamações em relação à carga horária, estresse, desgaste físico, angústias e frustrações; (2) mudanças de comportamento: referem-se a mudanças de comportamento profissional operadas nos docentes em virtude de pressões externas; (3) mudanças de atitudes: referem-se a alterações nas crenças do professor; (4) mudanças de personalidade: referem-se a mudanças na instabilidade emocional e no autoconhecimento, e (5) abandono da profissão: trata-se do grau máximo de choque com a realidade, pois a desilusão é tamanha que o docente percebe como única solução o abandonar da profissão.

As causas do “choque com a realidade” são várias. Veenman (1984) inventariou os principais problemas sentidos pelos docentes em início de carreira, analisando 91 estudos realizados entre 1961 e 1984 por investigadores de diferentes países. Os oito principais problemas destacados pelo autor são: (1) disciplina em sala de aula; (2) motivação dos alunos; (3) lidar com as diferenças individuais; (4) avaliação do trabalho dos alunos; (5) relações com os pais; (6); organização dos trabalhos na classe; (7) materiais insuficientes, e (8) lidar com os problemas individuais dos alunos.

Na mesma direção, Guterres (2011) também entende que:

As causas deste choque são diversas, de ordem pessoal e contextual e, convergem para a sua emergência, a eleição equivocada da profissão, atitudes e características pessoais inadequadas, formação inadequada (muitas vezes, demasiado teórica e pouco relevante para a prática), uma situação escolar problemática (relações autoritárias e burocráticas, estruturas organizativas rígidas, isolamento no local de trabalho, escassez de equipamentos, sobrecarga de trabalho, pressão dos pais, multiplicidade de funções e tarefas a desempenhar). (p. 15).

Desse modo, as causas do “choque com a realidade” podem ser inúmeras, desde a escolha equivocada da profissão, passando pela formação inadequada, ambiente escolar, relacionamento, etc. Essa gama de possibilidades reforça a necessidade de pesquisas que tratem das especificidades de cada área do saber a fim de contribuir com possibilidades de compreensão das peculiaridades de cada área, já que a docência perpassa todas as áreas do saber.

Jesus e Santos (2004) chamam a atenção para o fato de que não são todos os profissionais que vivem o “choque de realidade”, visto que muitos profissionais não ficam desiludidos ou insatisfeitos com o início da prática profissional, ao contrário, ficam entusiasmados e satisfeitos. A esse respeito, Guterres (2011) esclarece que “os desafios no início de carreira docente fazem parte do processo de adaptação dos professores principiantes ao ambiente profissional” (p. 38). Para Silva (1997):

O corte entre o ideal e o real, ou seja, entre a teoria, adquirida durante a formação inicial, e a realidade da vida na escola, a ambiguidade do papel por esta desempenhado numa sociedade caracterizada por constantes mudanças, a multiplicidade de papeis que estão cometidos aos professores, logo a partir do seu primeiro dia de profissão, transformam a etapa de iniciação num contexto propício ao aparecimento de dilemas. (p. 56).

Esses dilemas advindos do “choque com a realidade” podem ser sanados com a iniciativa dos novos docentes em desenvolver a sua própria forma de ser e de lidar com as mudanças. Silva (1997) ainda afirma que “será no seio da própria escola que o professor inexperiente encontrará o apoio necessário para continuar a sua formação através de um trabalho conjunto com um supervisor” (p. 59).

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

O presente trabalho classifica-se como descritivo, pois tem o objetivo de verificar que contornos o “choque com a realidade” enfrentado pelos docentes durante o ingresso na carreira adquire no ensino de Contabilidade no Brasil. Segundo Gil (1999), a pesquisa descritiva tem como principal objetivo descrever características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre as variáveis. Ainda segundo o autor, uma de suas características mais significativas é a utilização de técnicas padronizadas de coletas de dados.

Quanto à abordagem do problema de pesquisa, o estudo é considerado predominantemente qualitativo. Para Beuren (2006), na pesquisa qualitativa, concebem-se “análises mais profundas em relação ao fenômeno que está sendo estudado, este tipo de abordagem visa destacar características não observadas por meio de um estudo quantitativo” (p. 92). O presente trabalho também é considerado quantitativo, visto que ele procura quantificar os dados coletados através de questionários (Oliveira, 2007), por meio de estatísticas descritivas. A utilização das duas abordagens é vista de uma maneira positiva. Para Oliveira (2007):

Adotar a prática de combinar técnicas de análise quantitativas com técnicas de análise qualitativas proporciona maior nível de credibilidade e validade aos resultados da pesquisa evitando-se assim, o reducionismo por uma só opção de análise. (p. 39).

O instrumento de coleta de dados foi o questionário que, usualmente, permite a descrição e o cálculo de variáveis de certo grupo de indivíduos, observando suas características (Richardson, 2011). O questionário em estudo foi testado e validado por Araújo e colaboradores (2013). O instrumento está estruturado em três blocos.

  • No primeiro bloco, procurou-se identificar quais os principais problemas enfrentados pelos docentes em sala de aula, quais sejam: falta de disciplina e de respeito dos alunos em sala de aula; a falta de motivação dos estudantes; a falta de tempo; o domínio de diferentes métodos de ensino; o conhecimento das políticas e normas acadêmicas; determinação do nível de aprendizagem dos alunos; a quantidade de trabalhos administrativos; dificuldade em lidar com a heterogeneidade de alunos que chegam ao ensino superior; falta de orientação e suporte por parte da instituição; salas de aulas muito povoadas (superlotadas); a falta de condições para qualificação (apoio à pós-graduação).
  • No segundo bloco, foram colocadas duas questões abertas, as quais permitiam aos participantes descreverem outros problemas que, por ventura, tivessem afetado suas respectivas carreiras. A segunda questão tinha o objetivo de saber como foi o ingresso na carreira e quais dificuldades foram enfrentadas.
  • O terceiro bloco teve o propósito de caracterizar os respondentes (sexo, idade, titulação, tempo de atuação na docência, outras atividades exercidas, localização geográfica e tipo de dependência administrativa da instituição à qual o docente está vinculado).

Para a coleta de dados, dois procedimentos distintos foram realizados: fez-se um levantamento na Plataforma e-Mec e nos sites das Instituições de ensino superior com o intuito de encontrar o endereço eletrônico dos professores. Depois de captados os e-mails dos professores, foram enviadas mensagens eletrônicas (personalizadas por mala direta) às coordenações de cursos, solicitando o encaminhamento do questionário aos docentes, e diretamente para os professores, quando o e-mail era disponibilizado nos sites das IES, sendo as instituições públicas aquelas que mais evidenciam esses endereços.

Enviaram-se 2321 mensagens às instituições e aos professores, no período de 07 de janeiro a 08 de fevereiro de 2013. Foram realizadas três tentativas de envio, com intervalo de uma semana para cada envio. Como resultado dessas tentativas, obteve-se 574 respostas de professores em todas as fases do ciclo de vida. Neste estudo foram considerados apenas os ingressantes na carreia, ou seja, docentes com até 3 anos de experiências. Dessa forma, esta pesquisa conta com uma amostra de 84 professores de diversos estados brasileiros.

Os dados quantitativos, constantes no bloco 3 do questionário, foram analisados por meio da estatística descritiva, o que permitiu a caracterização dos 84 respondentes da pesquisa. Na sequência, as questões fechadas constantes no bloco 1 do instrumento, relativas aos problemas enfrentados pelos docentes, também foram submetidas à análise descritiva por meio do levantamento da média obtida por cada por problema.

Finalmente, as questões abertas que compuseram o bloco 2 foram examinadas por meio da Análise de Conteúdo, conforme as orientações de Bardin (1977) e Collis e Hussey (2005). Foram seguidos os seguintes procedimentos: (i) organização e sequenciamento das respostas; (ii) realização de uma segunda leitura visando codificar os textos transcritos; (iii) análises efetivas dos itens selecionados. Foram estabelecidas as seguintes categorias: a) problemas relacionados aos alunos; b) problemas relacionados à instituição; e c) problemas relacionados aos próprios docentes.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1. Caracterização dos respondentes

Dentre os respondentes, 43(51%) são do sexo feminino e 41(49%), do sexo masculino. Esse resultado sinaliza para a predominância feminina na carreira docente, o que não ocorria até recentemente (Araújo et al., 2013). Da mesma forma, dados do Conselho Federal de Contabilidade (2012) mostram que é crescente o ingresso de mulheres na área contábil: o gênero feminino representava 17,18% do total de contadores regularmente inscritos no Conselho Federal de Contabilidade em 2004; já em 2011, esse gênero representa 26,48%, ou seja, houve um aumento de 9,3%, em 8 anos. Também nos bancos escolares, o número de mulheres, em vários cursos, inclusive, em Ciências Contábeis, já é superior ao número de homens, conforme demonstram os Censos da Educação Superior realizados pelo Ministério da Educação.

No que diz respeito à titulação dos respondentes, observou-se que 49 já são mestres, correspondendo a 58% do total da amostra, e três docentes (4%) são doutores, ou seja, 64% da amostra investigada já possuem formação stricto sensu, apontando que também o nível de titulação dos ingressantes na profissão vem se alterando nos últimos anos. Já os docentes detentores de MBAs ou Cursos de Especialização eram 27 professores (32%), enquanto os graduados eram apenas 5, ou seja, 6% da amostra. O fato de poucos professores apresentarem título de doutor se justifica por este estudo analisar o início na carreira docente, muito embora alguns mestres já estejam cursando o doutorado.

Também foi observado que 54% dos respondentes realizam outra atividade ligada à contabilidade, além da docência, o que quer dizer que, no início da profissão, os professores não estão apenas atuando na atividade de ensino. Em outras palavras, a maior parte deles, quando inicia a docência, ainda mantém um “pé no mercado profissional”, o que é positivo para sua formação, dado o caráter pragmático da profissão contábil.

No que diz respeito à dependência administrativa da Instituição de Ensino Superior (IES) à qual o docente está vinculado, foi constatado que 57% desses estão vinculados a instituições públicas e os demais (43%) às instituições privadas.

A Região Sudeste apresentou o maior número de participantes na pesquisa (31%), sendo São Paulo o estado que teve a maior participação (27%). A participação de docentes da região Sul representou 28% da amostra, sendo a participação dos três estados daquela região, em média, de 9%. A região Nordeste ficou em terceiro lugar, compondo 18% da amostra, sendo o estado do Rio Grande do Norte o que apresentou maior número de participantes (8% da amostra total). Os docentes da região Centro-Oeste totalizaram 17% da amostra. Já os respondentes da região Norte representaram apenas 7% da amostra. Os estados que não apresentaram nenhuma resposta foram: Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Maranhão, Piauí e Sergipe.

3.2. Contornos do "choque com a realidade"

A amostra foi composta somente por docentes que estão na primeira fase do ciclo de vida, conforme proposto por Huberman (2000), ou seja, com até 3 anos de ingresso na profissão. Inicialmente foram analisados os principais problemas sentidos pelos professores em suas carreiras acadêmicas, citados por Vennman (1984) e complementados pela pesquisa de Araújo e colaboradores (2013). Utilizou-se atribuição de nota de 0 a 10 aos problemas apresentados, sendo nota 1 (um) para os problemas que não afetam suas atividades, ou seja, discordam totalmente, e 10 (dez) para aqueles que afetam muito sua atuação como docente, ou seja, eles concordam totalmente.

A tabela 1 apresenta a distribuição de médias para cada problema citado pelos professores nessa fase de início de carreira.

Tabela 1. Nota media dos problemas enfrentados pelos docentes

Variáveis

Média

1) Falta de motivação discente

6,5595

2) Heterogeneidade das classes

6,4286

3) Salas superlotadas

5,9643

4) Falta de Tempo

5,6071

5) Dificuldade para determinar nível aprendizado

5,4524

6) Quantidade de trabalhos administrativos

5,3452

7) Falta de orientações da IES

5,2381

8) Domínio de diferentes métodos ensino

5,1667

9) Falta de condições para qualificar

4,9643

10) Falta de disciplina discente

4,5952

11) Conhecimento das normas acadêmicas

3,9881

Fonte: Dados da pesquisa.

Como se pode observar, a variável “falta de motivação discente” obteve a maior média dentre as pesquisadas (6,56), em uma escala de zero a dez. Esse é, então, o principal problema enfrentado pelos professores que estão na fase inicial da profissão. Esse resultado corrobora os achados de Veenman (1984), em que a falta de motivação aparece em segundo lugar entre os problemas enfrentados pelos docentes. A esse respeito, Leal, Miranda e Carmo (2013) destacam a importância de que o professor conheça os processos de motivação discente e que a qualificação docente, em termos didático-pedagógicos, pode ser uma solução.

O segundo problema apontado pelos docentes, com média de 6,43, se refere à “heterogeneidade das classes”. Esses resultados estão em sintonia com o estudo de Veenman (1984), em que a diversidade das salas de aula foi apresentada como terceiro problema. É notório o maior acesso à universidade e os incentivos destinados à educação, principalmente, nos últimos anos, o que contribui para que diferentes públicos tenham acesso ao ensino superior, tornando as salas de aula cada vez mais diversas. O sistema de cotas que vem sendo implantado pelo governo brasileiro pode ser citado como exemplo. Há diferenças de idade, alunos que cursaram maior parte do ensino fundamental e médio em escolas de ensino público, aqueles que cursaram em escolas particulares etc. Fica o desafio para o docente de lidar com a diversidade em sala de aula logo nos primeiros anos de atuação profissional.

Intimamente ligado à diversidade em sala de aula está o terceiro problema destacado pelos docentes investigados, qual seja, “salas superlotadas”, isto é, grande quantidade de alunos por sala de aula. Salas de aula superlotadas tiveram média de 5,96, cujas causas são bastante parecidas com o segundo problema (diversidade). A esse problema também se juntam outros aspectos como redução de custos por parte das instituições privadas e a expansão do ensino superior ocorrida nas últimas décadas.

O quarto problema enfrentado pelos docentes é a “falta de tempo”. No início da carreira, é necessário que o docente despenda maior tempo para organizar suas aulas. A situação fica mais complicada quando esses são encarregados de ministrar disciplinas que não fazem parte de sua linha de pesquisa, o que requer maior tempo para o seu preparo. Esse problema também pode ser fruto de atividades correlatas, como orientação de pesquisas, participação em projetos e atividades administrativas que os professores desempenham em suas instituições. Tais constatações convergem para um problema característico da fase inicial apontado por Veenman (1984), que são as pressões e o desgaste mental e físico assumidos por esses profissionais no decorrer do tempo.

Em seguida, tem-se o problema “dificuldade para determinar nível aprendizado”. Esse problema pode ser fruto da falta de formação didático-pedagógica do docente que atua na área contábil. No estudo realizado por Guterres (2011), essa é uma característica comum entre os professores iniciantes, a dificuldade entre aprendizagem acadêmica e a realidade da docência. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96) estabelece, em seu Art. 66, que “a preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado”. Como na área contábil o número desses programas ainda é pequeno, considera-se frágil o incentivo para a formação didático-pedagógica do docente. Além disso, como afirmam vários estudos, a Pós-Graduação stricto sensu está focada na pesquisa e não no preparo para atuação em sala de aula (Gatti, 2010; Imbernón, 2011; Isaia, 2006; Lapini, 2012; Miranda, 2010; Silva e Costa, 2013; Soueneta, 2014; Vasconcelos 2009).

O sexto problema que mais aflige os docentes iniciantes é “quantidade de trabalhos administrativos”, o que está relacionado com outras atividades que os professores podem exercer, como, por exemplo, coordenações, diretorias, supervisões, projetos de pesquisas, participações em bancas, avaliações científicas etc. Na sétima posição, aponta-se a “falta de orientações da IES”, um problema que se refere à falta de informações sobre as instituições às quais pertencem. Novamente aparece a falta de preparo para atuação no ambiente acadêmico na condição de professor.

Em oitavo lugar, tem-se “domínio de diferentes métodos ensino”, pois o professor, muitas vezes, é obrigado a ministrar disciplinas frente às quais não tem domínio do conteúdo e dos métodos específicos, que fogem da sua linha de pesquisa, e que demandam mais tempo para serem estudados. Os professores, nesse início de carreia, muitas vezes, são surpreendidos com disciplinas sobre as quais não têm conhecimento suficiente para ministrar aulas, porém, em grande maioria, os docentes com mais tempo na instituição possuem privilégio na escolha por disciplinas, e os “novos de casa” acabam ficando com aquelas que não receberam adesão.

No instrumento de coleta de dados, além das questões fechadas (tabela 1), foram apresentadas as seguintes perguntas para os docentes: Você gostaria de mencionar outros problemas enfrentados em sala de aula no seu dia a dia? Como foi o início de sua carreira? Quais foram os principais problemas? Em vários relatos de professores, as variáveis apresentadas no instrumento foram reafirmadas, mas também surgiram outras variáveis, as quais foram categorizadas em três grupos: a) problemas relacionados aos alunos; b) problemas relacionados à instituição; e c) problemas relacionados aos próprios professores.

Na primeira categoria, dentre os problemas relacionados aos alunos, pode-se observar novamente a falta de motivação discente. O professor 57 deixa claro que a maior barreira encontrada no seu início de carreira foi a desmotivação de seus alunos. Da mesma forma, o professor 68 afirma que a “falta de interesse do aluno em relação ao assunto de determinadas disciplinas ministradas” é um problema.

Ao analisar a “desmotivação discente” citada pelos respondentes, uma das causas identificada nas falas docentes se refere à falta de maturidade dos alunos. O professor 7 afirma que “o maior problema é a falta de maturidade dos alunos para encarar o curso com mais responsabilidade”. Já o professor 30 informa que seu início de carreira “foi muito difícil, pois os alunos não respeitam professores novos no curso, possuem interesse apenas no diploma e não no aprendizado”. Essa afirmação anterior coincide com a do professor 39, que afirma: “como sou uma professora jovem (iniciei com 24 anos), enfrentei, no início, uma falta de credibilidade (certa desconfiança) de parte dos alunos”.

Outro problema relatado pelos professores na fase do “choque com a realidade” se refere à formação discente anterior à faculdade. Sobre esse aspecto, o professor 17 afirma que:

O maior problema que tive com os alunos foi o despreparo dos mesmos, como resultado de uma falta de base educacional. Eles vêm para a faculdade com uma cultura equivocada, fissurados por nota e diploma. Não são encorajados a raciocinar por conta própria e a ler.

Muitos estudos mostram que a formação prévia do estudante é uma das variáveis mais fortes quando se analisa os determinantes do desempenho acadêmico (Campbell, 2011; Ferreira, Santos e Miranda, 2014; Steenkamp, et al., 2009; Waples e Darayseh, 2011).

Também apareceu nas falas dos respondentes a heterogeneidade das classes. Foram detectados alguns depoimentos importantes. O professor 75 afirmou que o seu maior problema foi “conquistar a confiança dos alunos, há turmas muito heterogêneas e com perfis diferentes”. Já o professor 77 afirma sentir “receio por ter que lidar com a heterogeneidade de alunos que chegam ao ensino superior”. O professor 81 expõe que “os maiores problemas encontrados eram a heterogeneidade da turma levando em consideração o aprendizado”. Para o professor 42, a heterogeneidade está relacionada com o ingresso pelo ENEM:

Trabalho com disciplina de contabilidade introdutória, diretamente com os alunos ingressantes na universidade e, na minha opinião, a principal dificuldade é lidar com a heterogeneidade deles, sobretudo, após a opção da minha universidade pelo ingresso 100% via ENEM.

Outras variáveis surgiram em meio às respostas dadas pelos professores. O mau uso da tecnologia, por parte dos alunos, foi um deles. Muitos alunos utilizam aparelhos eletrônicos durante a aula, acessando redes sociais e outros sítios, o que leva à dispersão da classe. Nesse sentido, o professor 13 afirma que o “mau uso de tecnologias pelos alunos” é um problema que ele enfrenta em sua atuação. Já o professor 23 reclama da “concorrência na aula com os meios eletrônicos, como celular e computador”. O professor 37 afirma que “os alunos, na maioria das vezes, vêm de uma rotina de trabalho de 8 a 10 horas, dormem em sala de aula, ficam no facebook, o que inibe o aprendizado deles e de quem está ao redor”.

Na segunda categoria, problemas relacionados à instituição de ensino, foram diagnosticados outros problemas. O primeiro se refere às turmas cheias. O professor 8 afirma que um das dificuldades que enfrenta é “as turmas superlotadas com alunos de diversos cursos e níveis distintos”. Esse professor ainda afirmou ter “dificuldade de lidar com uma turma lotada de alunos”.

Enquanto o professor 70 afirma que a “falta de orientação e integração com a instituição” foi um dos problemas que enfrentou no início da sua carreira. Já o professor 68 apontou que a “falta de apoio e de informação sobre a instituição ‘X’, falta de repasse de informações e de conteúdo por parte dos docentes já estabelecidos para o novo docente” é um problema. O professor 48 identificou como um problema a “falta de acompanhamento por parte da instituição para começar a dar aula”. Já o professor 31 afirma que:

O início da minha carreira como docente foi muito difícil, fui direto para a sala de aula sem nenhum suporte, apoio ou orientação da coordenação da Instituição ou de outros professores, nem na elaboração do material pedagógico (plano de aula, relatórios, diários).

Os professores também criticam a infraestrutura das faculdades, em relação às salas e equipamentos eletrônicos. Nos depoimentos dos professores 77 e 52, são mencionadas, respectivamente, “condições físicas de sala de aula” e “falta de estrutura física e de laboratórios para atividades práticas”. O professor 59 menciona “falta de tecnologia (computadores) para todos os alunos”, enquanto o professor 16 aponta a falta de “suporte de material atualizado e equipamentos”. Já o professor 21 enfatiza:

Dada a rapidez que a informação é transmitida hoje em dia, nossos alunos enfrentam problemas de concentração em aulas convencionais (quadro e giz), e isso nos leva a ter que experimentar e ousar em nossas aulas, utilizando de meios de informática, dinâmicas e tudo aquilo que permita chamar a atenção destes alunos, e isso é bem complexo e difícil.

Na terceira categoria, problemas relacionados aos próprios docentes, também foram apontadas dificuldades relevantes, que se constituem fortes barreiras ao processo de ensino e aprendizado.

Nesse sentido, o depoimento do professor 9 informa que um problema que ele tem enfrentado no seu início de carreira é a “falta de tempo para preparação das aulas, visto que tenho pouca experiência”. Da mesma forma, a falta de “domínio de diferentes métodos ensino” também foi evidenciado, pois o professor, muitas vezes, é obrigado a ministrar disciplinas frente às quais não tem domínio do conteúdo e dos métodos específicos, que fogem da sua linha de pesquisa, e que demandam mais tempo para serem estudados. O professor 40 afirma que possui “falta de tempo para planejamento de disciplinas que não fazem parte da minha linha de pesquisa”. O professor 25 afirma que, no início, “não dominava muito as disciplinas, tive que aprender com os estudantes também”.

Os professores iniciantes também reclamam da falta de experiência, o que facilitaria identificar uma boa didática. O professor 1 relata: “o único problema enfrentado foi encontrar a melhor didática”. Já o professor 16 afirma que seu início de carreira foi “conturbado, em virtude de entrar em sala sem o mínimo de conhecimento em didática. Esse foi o principal problema e, para corrigi-lo, fiz vários cursos e busquei muito conhecimento da área”. O professor 17 afirma que “meu único problema foi devido à falta de experiência, o que me prejudicava no planejamento de tempo para as atividades”. Já o professor 24 afirma que seu problema foi a “falta de experiência na docência e ter iniciado muito novo”.

Outra insatisfação comum é a baixa remuneração, sendo insuficiente para se dedicar todo o tempo no preparo das aulas. O professor 19 afirma que o problema que enfrenta é a “falta de valorização salarial aos profissionais docentes”. O professor 53 destaca “a baixa remuneração oferecida aos professores por algumas faculdades”.

Em virtude da quantidade de problemas elencados e da intensidade desses (conforme tabela 1), o ingresso na profissão por parte dos docentes pesquisados está longe de ser um “mar de rosas”. Esse início de carreira, que deveria ser cheio de motivações para os profissionais que optaram pela docência, na maior parte das vezes, não é enfrentado com tanta facilidade pelos professores. Falta preparo sistematizado para o exercício da docência, bem como condições de qualificação, titulação e salário que permitam ao docente dedicação exclusiva ao ensino, entre outros problemas, conforme detalhado anteriormente. Tudo isso deixa evidente que o “choque com a realidade” está presente na maioria dos professores pesquisados.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa teve o objetivo de identificar os principais problemas enfrentados pelos docentes no início de sua carreira como professores. Fundamentaram o estudo literaturas relativas às fases de vida dos professores e seus problemas (Araújo et al., 2013; Gonçalves, 1995, 2009; Huberman, 1989, 2000; Jesus e Santos, 2004; Veenman, 1984).

Os resultados encontrados corroboram os achados de Silva (1997) e Jesus e Santos (2004), que refletem sobre a importância do início da carreira dos docentes. Os principais problemas que afligem os docentes do curso de Ciências Contábeis são: desmotivação discente, heterogeneidade das classes, salas superlotadas, falta de tempo, dificuldade para determinar nível de aprendizado, quantidade de atividades administrativas.

O problema “falta de motivação discente” representou a maior média dentre as variáveis pesquisadas. Esse problema reafirma os achados de Veenman (1984), em que a falta de motivação aparece em segundo lugar entre os problemas enfrentados pelos docentes. Outro problema salientado pelos professores é a “heterogeneidade das classes”, pois o primeiro contato com a sala de aula se torna um problema quando se encontram alunos com características diferentes, níveis de aprendizagem diferentes. Esse problema pode aumentar com “salas superlotadas”, ou seja, quando há grande quantidade de alunos por sala de aula, um aspecto também apontado pelos docentes. A “falta de tempo” também foi citada pelos docentes, pois o início da carreira obriga o docente a despender maior tempo para organizar suas aulas. Veenman (1984) já apontava que o início acarreta pressões, desgaste mental e físico, necessitando maior dedicação do discente.

Muitos professores deixaram relatos sobre as dificuldades enfrentadas no seu início de carreira, reforçando a complexidade desse difícil período de inserção na carreira. Os achados da pesquisa evidenciam que a maioria dos docentes não está preparada para a realidade da docência. O início da carreira docente não é tão fácil como se espera. Deixar de ser aluno e se tornar professor, da noite para o dia, pode tornar esse início frustrante, acarretando o “choque com a realidade” e suas consequências.

Os achados da pesquisa apontam que os profissionais da área precisam não só de cursos de pós-graduações na própria área de atuação, mas, também, de uma educação que os permita aprimorar as técnicas de ensino-aprendizagem, o que poderia tornar o início de carreira mais amena, com menos problemas. Para evitar o “choque com a realidade”, o ideal seria que os cursos de pós-graduação stricto sensu no Brasil tratassem essas questões da área pedagógica em suas matrizes curriculares.

Esses resultados evidenciam a necessidade de uma preparação sistematizada para o exercício da atividade docente no início da carreira. Silva (2007) mostra em seu estudo que os problemas advindos do “choque com a realidade” podem ser minimizados, ou até mesmo sanados com iniciativas dos próprios docentes. É preciso que eles invistam em suas carreiras, preocupando-se com sua formação continuada, tornando-se atores de sua própria carreira, por meio da transformação do seu sistema de crenças, do seu autoconhecimento, da sua autoimagem, e tornando-se abertos à mudança e desenvolvimento profissional.

A escassa literária de estudos que focam a área contábil, no que as refere ao ciclo de vida dos professores e dos problemas enfrentados pelos mesmos na carreira, é uma limitação no sentido de amenizar as “crises” que possam acontecer. Portanto, sugerem-se novas pesquisas que abarquem a carreira docente e os problemas da área de Ciências Contábeis.

Agradecimentos

Programa de Educação Tutorial (PET) da Universidade Federal de Uberlândia e Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG)

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